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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Cheio de Méritos , mas...

Cheio de Méritos , mas...

Eu demorei a pronunciar-me sobre a tragédia da região Serrana do Rio de Janeiro. Sou filósofo e, como filósofo penso de olhos abertos. Penso no quê está para lá da existência do existente. Como filósofo, não ouso dizer o que o poeta diz, mas penso naquilo que está sendo dito.
A poesia e o pensamento, através da escuta do apelo do ser, instauram o espaço da clareira. Este apelo é silencioso e o escutar cuidadoso desse silêncio é capaz apenas para a filosofia e a poesia por se relacionarem com a linguagem de maneira essencial. Poetas e pensadores constituem o idêntico (entendido como o mesmo), pois, cada um a seu modo, possuem a tarefa de trazer o ser à palavra. São diferentes essencialmente enquanto o pensamento se esforça para explicitar o ser e o poeta apenas o dita, respeitando seu mistério.
Pois bem, Hölderlin , um dos poetas prediletos de Heidegger vai dizer “Voll Verdienst, doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde. (Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra) . Notemos que esse “mas” adversativo é uma  advertência. Mas advertência de quê e para quem?
Heidegger desde Ser e Tempo indica que Habitar é o modo de ser da relação homem com o mundo, o homem habita o mundo.  Em Ser e Tempo ele vai chamar essa habitação do homem com o mundo , usando o termo Ser em, ser em no mundo daí Ser no Mundo.
A partir do cartesianismo, a relação do homem com o mundo é uma relação de interioridade quando compreendida a partir da autonomia de cada um, ou seja, o mundo é algo em si, a “Res Extensa” e o homem é algo em si, uma “Res, uma substância, Res Cogitans”, uma coisa pensante.
Essa relação entre esses dois compartimentos é de interioridade, o homem está dentro do mundo. É mais ou menos assim que a metafísica vai elaborar essa relação.
 Heidegger vai criticar essa relação de compreensão do homem com o mundo. Segundo ele podemos dizer “O livro está dentro da bolsa”, mas não podemos dizer: o homem está dentro do mundo tal como o livro dentro da bolsa. Pode até haver uma reciprocidade biológica como no caso dos animais e vegetais, pois os animais e vegetais também estão no mundo numa certa interioridade. Porem na interioridade dos animais e vegetais existe um co-pertencimento biológico. Essa  relação chamamos de adaptação. Os animais se adaptam ao meio ambiente, os vegetais uns aos outros, aos parasitas.
A relação do homem com o mundo não é de adaptação. Na relação de adaptação ou se adapta ou morre. Para o homem é diferente , não tem lugar que ele não se adapte, porque a relação dele não é de adaptação. Ao contrário da imanência tipo: a cadeira está na sala de aula, o livro dentro da bolsa, o vegetal está lá fora, o homem habita o mundo.
A essência da adaptação, Heidegger vai dizer que é a construção, onde ele quer pensar que essa relação do homem com o mundo se dá nessa habitação que constrói, construção que habita, há uma reciprocidade ai.
 “Quando Holderlin fala do habitar, ele vislumbra o traço fundamental da presença humana”. Presença humana – termo fundamental para Heidegger. Seja Presença ou Ser-ai o que o Heidegger está querendo indicar com a palavra Dasein é a Instância do Ser. Sein , o Ser se dá jogado no tempo e espaço. Isso que é o Ser não está nem no homem nem no mundo. Isso que faz com que o homem seja homem e o mundo seja mundo está no acontecimento de homem e mundo que é anterior a sua separação.
Mas, Comecemos por “... Poeticamente o homem habita...”.
Geralmente enxergamos a poesia como algo muito relacionado com devaneios, com fantasia ou sendo a poesia do âmbito da literatura. Heidegger diz que compreender o poético apenas por esses dois vieses é a manifestação mesma da decadência da compreensão moderna disso que é linguagem e realidade.
Uma primeira questão que Heidegger põe em discussão é que no verso “... poeticamente o homem habita...” não é forçoso supor que os poetas é que habitam poeticamente, já que eles é que lidam com o fazer poético e, nesse sentido, a matéria de seu trabalho seria o lugar em que eles habitariam. Mas e nós, os seres humanos em geral? Em que termos poderíamos impunemente afirmar que poeticamente habitamos? No estado de coisas em que se encontra o mundo em que vivemos, dizer que habitamos poeticamente faz parecer que padecemos de um romantismo enfermo. Porém, se estivermos pensando o sentido de “habitar poeticamente” dessa forma, segundo Heidegger, é porque ainda estamos pensando esses termos na perspectiva sensocomunizada do que seja “habitar” (moradia) e do que seja “poético” (fuga da realidade), sendo necessário dar um passo adiante desses pontos de vista. Falo de Poiesis , de um  construir , de uma produção de um modo de vida.
Heidegger começa por recomendar que, para “ouvir com inteireza as palavras ‘... poeticamente o homem habita... ’, é preciso devolvê-las cuidadosamente para o poema” (p.165). Para Heidegger, devemos impor a nós mesmos a tarefa de pensar o "habitar" e o "poético" a partir de seu "vigor essencial", isto é, a partir da perspectiva da existência e da condição humana. No entanto, o habitar poeticamente do homem não está consubstanciado desde o princípio, mas é um habitar que precisa ser poeticamente construído, já que o "lugar" dessa construção é a própria existência humana. Nas palavras de Heidegger: "Mas como encontramos habitação? Mediante um construir. Entendida como deixar habitar, poesia é um construir" ( p. 167). Somente tomando como tarefa a busca da compreensão do que seja a existência humana e da poética como o deixar-habitar dessa mesma existência é que poderemos nos acercar da essência do que seja o habitar hölderlin-heideggeriano.
Com "cheio de méritos, mas...", Heidegger explora o aspecto da meritocracia humana, ou seja, todas as conquistas alcançadas pelo esforço despendido na construção de obras, na realização de projetos, na consumação de desejos. Desse esforço advém o mérito, ou seja, o merecimento da premiação pelo trabalho feito que se consubstancia em edificações de toda ordem e na utilização das mesmas. Apesar da aparente realização meritória humana estabelecido pelo termo "cheio de méritos", esta é relativizada pela preposição condicionante "mas" e, mais que isso, pelo advérbio "poeticamente". No que isso implica? Na certeza de que a realização humana não se consuma tão somente nessa construção de coisas, objetos e edificações ou no semear, no plantar e no colher. O mérito advindo de todo esse trabalho não abastece o ser humano em todas as carências e necessidades de seu habitar existencial.
O que se percebe aqui é que o habitar poeticamente é o que dá sentido à existência humana, pois ele é a condição mesma da realização ou não do ser humano na construção de seu habitar neste mundo. O poético da existência humana diz respeito à busca incessante do sentido do existir após alcançados os louros do mérito.
Ancorado pelos versos de Hölderlin – possivelmente seu poeta de predileção – em seu ensaio “... Poeticamente o homem habita...” Heidegger afirma que o habitar humano (no mundo) é fundado no poético, é, portanto, a poesia que permite o habitar ser um habitar: “poesia é deixar habitar”, “é a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar”. Assim sendo, a poesia é um construir, é uma tomada de medida – uma medida privilegiada. É a poesia que dá medida ao homem – e a medida da poesia é a fisionomia do céu, o deus desconhecido. Digo fisio de Physis , natureza  e nomia de Nomos, de regra , lei . Tem uma  lei da natureza e não é bom desrespeitá-la.
Mas o que  aconteceu? Já não conseguimos deixar as coisas como as coisas são. Não conseguimos nos demorar nas coisas. Esse demorar é que seria o habitar poético do homem. O que quero dizer com isto?
Quero dizer que o capitalista olha para uma queda dágua é vê uma hidrelétrica , olha para a boca da mata atlântica e vê um condominio de luxo, tudo isso com um plano diretor do município “politicamente correto”, uma  licença “ambientalmente correta”.
O habitar heideggeriano "nesta terra" tem a ver com a busca da realização da nossa existência, portanto, resguarda uma perspectiva temporal, ou seja, um construir constante na busca de uma penetração profunda no sentido da vida.
Mas , o quê nos resta? Nesse momento só nos resta  chorar as perdas , chorar os nossos mortos.
Enquanto isso, no Planalto Central, os ratos reviram o “luxo” , os homens o “lixo”


                                 (©by Adilson S. Silva)


HEIDEGGER, Martin. “... Poeticamente o homem habita...”. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback.
In: Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2002. p. 165-181